terça-feira, 31 de março de 2009

Crítica da peça Comprei um treisoitão e fui brincar com Deus

São Paulo, 27 de Março de 2009

Brincando de poesia e cinema no palco

“Comprei um treisoitão e fui brincar com Deus” é um dos bons exemplos de bom texto

Quando uma trupe de teatro se junta, um dos primeiros obstáculos para uma boa montagem é vencer o desafio de encontrar o que se quer dizer. Uma vez equacionada a questão é preciso encontrar como se quer dizer. Daí se recorre a grandes dramaturgos, universais, nos quais geralmente é preciso fazer pequenos acertos na obra para adaptar o texto ao nosso tempo, ao nosso olhar, ao nosso presente. Neste momento alguns grupos decidem tomar um caminho mais firme: escrever seu próprio texto e ter liberdade e propriedade total do que estão dizendo.
Isso acaba desembocando em tentar sua própria forma de encenação e abre caminho para uma agradável busca de influências que não necessariamente vêm somente do teatro, mas da poesia, do cinema, artes plásticas, enfim.
Hoje, quando falamos de um déficit de bons e novos textos no Brasil, há grupos e pessoas que caminham no sentido oposto desta crise. É o caso da Cia. Desencontrários. A companhia está agora em cartaz com o texto "Comprei um Treisoitão e Fui Brincar com Deus", no Espaço Satyros. O ator, diretor, cineasta e dramaturgo Joeli Pimentel começou em Londrina (PR), onde, aos 17 anos, buscou suas primeiras influências no cineasta e multiartista alemão Werner Fassbinder. O alemão teve uma produção artística prodigiosa em qualidade, acentuada em solidão, desespero, angústia e busca pela própria identidade. Pimentel buscava falar do ser humano de forma crua, com conflitos internos e com liberdade para falar palavrões, por exemplo. Fassbinder "mostrou" a ele que era possível.
Já o escritor e poeta curitibano Paulo Leminski deu a Joeli a porta para escrever de forma breve, frases curtas, ideias profundas, ao modo de um haikai. O movimento beatnik - a contracultura - e sua vontade de mostrar a realidade sem ilusões ou distrações também foi influência escolhida pelo jovem dramaturgo paranaense. É importante lembrar que Pimentel não buscou este caminho isolado.
Ele faz parte de uma onda de artistas, como outros que saíram do grupo Cemitério de Automóveis apenas para dar exemplo, que batalham - fora da verba pública - e que buscam seus próprios caminhos; de forma marginal e usando como arma a intelectualidade e a interdisciplinaridade de atuação.
Pimentel é um dramaturgo que tomou uma opção: de beber no cinema, na literatura e na filosofia para desembocar numa linguagem suja com toques de humanidade. Tomar opções é caminho compulsório não apenas a dramaturgos; mas também de atores para crescer na interpretação.
Mas, vamos à peça. "Comprei um Treisoitão..." começa assim: é honesta. Os atores estão lá. Os sentimentos também estão presentes. Ponto a favor. Samuca (Pimentel) é um presidiário que acaba de sair da cadeia e quer realizar três desejos: mijar sem se esconder, fumar um baseado muito grande sozinho e passar três dias com o sexo de mulher de verdade. Não realiza nenhum. Não se comunica com ninguém. Não aprendeu a fazer isso. Mas não é ignorante.
Raciocina de forma mediana. Lida com a frustração da forma como todos nós, todos os dias: vai esquecendo dos sonhos diários que se mostram inviáveis e cria outros ao mesmo tempo. Vai remendando pequenos sonhos.
Ao seu redor estão ramificações de sua personalidade: Gel (Danielli Avila), um amor platônico; Pepe (Nelson Peres), um trabalhador que na verdade raramente trabalha e tem dinheiro; e Urso (Fábio Arruda), que está numa overdose constante. Todos viciados.
Os atores estão acordados, ouvem e falam com propriedade e os palavrões não são o forte do texto: reflexo da propriedade de criação da peça. Estão todos num ambiente de solidão; típicos de quem já passou noites nas "vagas" de dormitórios do centro da cidade, tendo nas camas ao lado imigrantes/fugitivos ou "homens sombra".
A peça tem seu ápice no momento em que Samuca, do alto de um prédio, de posse de um revolver calibre 38, olha sua solidão e questiona Deus. A imagem é bem conduzida e leve. Como um haikai que transforma numa metáfora todo o texto.
Há experimentos interessantes na cenografia, criada quase apenas de lixo de caçambas da cidade. A cama não se equilibra nunca. Naturalmente seus apoios foram feitos para escorregar. A luz é concebida de baixo para cima trazendo efeitos interessantes à montagem.
"Comprei um Treisoitão...", primeiro texto de Pimentel, foi premiado pelo concurso Nacional de Nova Dramaturgia Brasileira no Rio de Janeiro em 2002. O curador do prêmio, Roberto Alvim, hoje à frente do Club Noir, com Juliana Galdino, interessou-se por montar a peça. Na época, o texto premiado foi dirigido por Mário Bortoloto no Teatro Carlos Gomes, no centro da capital fluminense. Somente agora Pimentel conseguiu fazer sua própria direção, entremeando a produção teatral à produção de curtas-metragens, com intuito de arredondar idéias de seu próprio texto.
Independente de outros julgamentos da qualidade desta obra (e haverá vários, todos pertinentes também), este grupo, assim como outros que merecem luz , traz a você uma pesquisa e paixões de uma vida inteira. E está apenas no princípio. Faz um teatro "com história", com substância. Então, sinta-se à vontade para sair de casa, aguentar o trânsito, estacionamento, etc, para ver este espetáculo. Vale a pena.

(Gazeta Mercantil/Fim de Semana - Pág. 7)(Juan Velásquez - Ator e jornalista - Comprei um Treisoitão e fui brincar com Deus Espaço dos Satyros 1, Praça Roosevelt, 214. Sábado, 21h. R$ 20. Até 11 de abril. )